Devassas no Centro Cultural Franciscano em Outubro

Centro Cultural Franciscano
de 3 a 26 Outubro
Sextas e Sábados em horário nobre - 21.30h

encenação Pedro Carraca coordenação de escrita e dramaturgia Miguel Viterbo desenho de luz Marinel Matos fotografia de cena Débora Rodrigues design cartaz Zatopek23

com André Filipe | Andreia Lima | Andreia Susano | Beatriz Oliveira | Jaqueline Rodrigues | Patrícia Leal | Pedro Pais | Pedro Paz | Paula Pereira | Rui Silva | Telma Grova

apoios Speedcom | Outra Face da Lua | Artistas Unidos

agradecimentos A todos os alunos do Curso Anual Actores 2012/2013 | Erika Oliveira | Mónica de Sousa Mendes | Junta de Freguesia de Carnide | Divisão Municipal da Cultura da Câmara Municipal de Lisboa.


O teatro ipsis verbis (verbatim theater)

No início, a arte imitava a vida. Depois, a arte começou a imitar a arte, com traduções, adaptações, alusões, homenagens, paródias e pastiches. A certa altura, a arte começou a ficar apinhada de citações e referências. Simultaneamente, o acesso à arte tornou-se muito mais popular. Com a difusão alargada do objeto artístico, o espectador passou a ter várias camadas de significados e referentes, alguns dos quais destinados apenas a connaisseurs — pessoas que, por exemplo, se sentem à vontade com parágrafos que combinam português, francês, latim e inglês. Oscar Wilde, em pleno final de século XIX, terá sido o primeiro a dizer que a vida imitava a arte muito mais do que o contrário.

Hoje em dia, a vida imita com tanta frequência a arte, ou o artifício, da televisão e dos media que os artistas, por falta de mundo ou, pelo contrário, em desafios revolucionários, regressam frequentemente à apropriação da vida como fonte de inspiração. A «apropriação», isto é, o uso de elementos de uma obra de arte de qualquer tipo na criação de uma outra obra de arte, é, de resto, um aspeto fundamental das histórias da arte, da música e da literatura.

Nos últimos 30 anos, algumas experiências de sucesso na utilização de falas reais (ipsis verbis, ou seja, tal e qual) foram sendo feitas nas mais diversas áreas e temáticas.

Em 1989, Nick Park e a Aardman Animations criaram o filme (e, de 2003 a 2007, a série) Creature Comforts, que usava as vozes do povo inglês postas na boca de animais, em respostas a entrevistas que mudavam assim o contexto de forma hilariante.

Em 2008, Alecky Blythe e a sua companhia Recorded Delivery criaram o espetáculo The Girlfriend Experience (sem nenhuma relação com o filme homónimo do ano seguinte), todo composto de falas gravadas num bordel, em conversas com prostitutas de meia-idade, irreverentes e sem madame nem chulo. As falas são interpretadas em palco por atrizes que ouvem as gravações originais em auriculares enquanto as reproduzem em tempo real. O resultado é ao mesmo tempo terrivelmente cómico e muito humano.

Em 2012, Matt Clarke criou, com o ator David Milchard, a série de sketches Convos With My 2 Year Old, conversas reais com a filha do autor dramatizadas por um homem adulto.

DEVASSAS (De ouvido, ou nada a ver) vai buscar a estes e a outros exemplos o uso de falas reais gravadas e transcritas, juntamente com a descontextualização que cria a surpresa, o caos controlado e o humor imprevisível. Quer-se aqui que «imprevisível» não signifique «que pode nunca suceder». Só o público o dirá.


A autoria

De quem é esta peça? Ou melhor, de quem é o texto desta peça?

O autor de um romance é, quase sempre, uma pessoa apenas. Também no teatro, pelo menos até à primeira metade do século XX, o dramaturgo foi sempre, tradicionalmente, um escritor isolado. No entanto, um texto ficcional que dá origem a uma produção em ecrã é frequentemente escrito a várias mãos.

No teatro contemporâneo, o termo «criação coletiva» significa, a maior parte das vezes, uma peça escrita por atores que entenderam que tinham capacidade para ser autores — muitas vezes, atores no início de carreira, quando ainda não têm ferramentas para fazer nenhum dos trabalhos bem, por mais apetência e queda que tenham. No entanto, nada implica, teoricamente, que uma criação coletiva seja pior do que uma obra de autor único.

Para criar a peça DEVASSAS (De ouvido, ou nada a ver), os alunos do Curso Anual Actores 2012/2013 da Formação Teatral (Teatro Levantado a 2 / Estrela 60) responderam ao desafio de gravar conversas deles próprios, de amigos, conhecidos e desconhecidos, com o propósito de se encontrar um tema comum. Na qualidade de coordenador de texto, propus-lhes então um tema e um dispositivo dramatúrgico, que foram aceites com entusiasmo. Voltaram todos a fazer gravações e transcrições para completar os buracos narrativos. A seleção e a ordenação dos textos foram então feitas de forma colaborativa, sempre com a minha direção.

Das cerca de quatro horas de conversas gravadas, foram transcritas mais de três. E dessas, só um quarto acabou por ter lugar na peça.

O passo seguinte consistiu na escrita original necessária para ligar os quadros de falas reais. Estas ligações construídas são invulgares no teatro ipsis verbis — inclusivamente, proibidas em algumas correntes desta forma teatral — mas aqui verificaram-se essenciais. A ideia foi sempre que o texto transcrito se tornasse indistinguível do escrito, no estilo e no conteúdo. E, de facto, o público não distingue, na enorme maioria dos casos, o que foi dito por alguém ou escrito por nós. Até porque grande parte da escrita original derivou, também ela, da transcrição de falas em personagem.

O facto de ser em grande parte transcrita de conversas reais significará que a peça é menos criativa, que tem menos autoria? Definitivamente, não. O método ipsis verbis — ou, neste caso, quasi ipsis verbis —é uma ferramenta de pesquisa e um processo de recontextualização. Uma peça não é apenas um conjunto de falas. Como qualquer obra de ficção, é um tema, uma trama, um tom, um tempo e um terreno. Parte tanto da situação como das personagens e das relações entre elas. E nada disto existe nas falas em bruto. Ou, mesmo que exista, nada obriga a que se mantenha.

O processo de criação foi divertido em todos os seus passos, e só se tornou verdadeiramente circunspecto quando me propus escrever este texto, onde palavras como «circunspecto» me surgem naturalmente. Há atores que são acometidos de solturas antes da estreia. Eu fico com diarreia verbal.

Luís Miguel Viterbo

  • Date: 15:45
  • Author:
  • Marcadores::
Formação Teatral 2012. Com tecnologia do Blogger.